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Gita Sen define este mundo feroz

Entrevista a Azul Cordo e Stephanie Demirdjian

A economista e feminista indiana Gita Sen afirma que existe um desafio de criar novos contratos sociais em “um mundo feroz”

Pioneira em pesquisas sobre gênero e desenvolvimento, Gita Sen é coordenadora geral da rede Mulheres por um Desenvolvimento Alternativo para uma Nova Era (DAWN, na sigla em inglês), organização dedicada à pesquisa em una perspectiva feminista. Na segunda-feira encabeçou um fórum sobre desenvolvimento sustentável no Ministério de Relações Exteriores e lançou o livro “Refundando los contratos sociales. Feministas en un mundo feroz”, editado por ela e Marina Durano para DAWN. Professora em Harvard tem uma trajetória de 30 anos dedicada ao ativismo e à análise feminista da economia política.

O encontro era no Hall de um hotel que nesse dia estava particularmente concorrido por sediar duas convenções simultaneamente. Saiu do elevador com seu cabelo grisalho recolhido em um coque, seus óculos ovais, uma túnica bordo e sandálias de couro marrom. Gita, que pelo seu extenso currículo poderia ter vivido várias vidas, sorriu ao localizar as jornalistas e no meio de bulício disse: “melhor conversar no meu quarto”. Já na poltrona de seu quarto, com a rambla e o entardecer como horizonte, a especialista conversou reflexiva e apaixonadamente e só parou quando a chamaram para avisar que era hora de jantar.

Como definiria o “mundo feroz” abordado no livro?

Gita Sen – Foi [Josefa] Gigi Francisco [ex-coordenadora geral de DAWN], falecida recentemente vítima de câncer, quem trouxe o termo à rede e pensamos que era muito apropriado, porque o mundo é mais feroz que antes. Por um lado, embora tenha havido um período nos anos 1990 – com as conferências de Viena, Cairo e Pequim – no qual houve grandes avanços com relação aos direitos humanos das mulheres, na última década houve muitos contragolpes e reações negativas ante a igualdade de gênero. Por outro lado, basta olhar ao redor para saber que o mundo está mais feroz que antes. Se bem que depois da crise de 2008 a agenda neoliberal perdeu seu caráter hegemônico, não deixou de pressionar (com medidas de ajuste e dívidas bancárias) e de controlar não apenas os países do sul, mas também a Grécia e Portugal, por exemplo, o que se traduz em menos equidade de gênero, de emprego e de condições de vida no mundo, situações que estão piorando. Também há que ver o alto número de refugiados como consequência do aumento de conflitos armados, econômicos e problemas ambientais, e considerar que a metade desses refugiados são crianças que estão crescendo sem família, que não estão vivendo, apenas sobrevivendo. Também se incrementou a violência contra as mulheres, e não se cumpriram os compromissos internacionais para frear a mudança climática: o clima tornou-se imprevisível, e isso afeta diretamente a agricultura e outras formas de produção, o que repercute em um problema de alimentação no nível mundial. De repente a ferocidade deste mundo tornou-se mais clara.

A que se refere quando diz “refundar um novo contrato social”?

Gita Sen – Embora a raiz do termo “contrato social” seja patriarcal, dado que as mulheres não haviam sido consideradas como parte desse contrato entre homens, DAWN resignifica o termo para captar de que forma ocorre a mudança social. Ele ocorre de maneira constante e em duas partes: no plano das ações concretas, com uma mistura de movimentos econômicos, políticos, sociais e tecnologias da informação; e com o que ocorre no plano das ideias, normas e definições que regem nossas ações. Refundar os contratos sociais requer uma grande disputa entre atos e ideias. Necessitamos entender isto para compreender quais lutas nós empreendemos, e empreenderemos, no âmbito ideológico. O contrato social tem esses dois planos, e os dois mudam, embora nem sempre isso seja positivo. O contrato social tem possibilidade de mudança, é flexível, flui e, ao mesmo tempo tem períodos de estabilidade. Um novo contrato social deve estar baseado na justiça social e na igualdade de gênero, mas está cercado por “secularizações” religiosas como o hinduísmo, o cristianismo e o islamismo.

-No livro estão registradas críticas à Organização das Nações Unidas (ONU), e se pergunta se ela serve como espaço multilateral para a participação dos estados e da sociedade civil.

Gita Sen – Devemos ser cuidadosas ao criticar a ONU. É um organismo que tem estado sob numerosos ataques das mesmas forças que criticam os Estados sob o paradigma neoliberal de que há que reduzir o Estado, fortalecendo a ideia de que os Estados são corruptos e ineficientes – mas, quem corrompe os estados? – e a ideia de que o financiamento por parte dos setores privados é melhor. Há uma tendência a privatizar a ONU por parte dos países do norte, que anseiam que esta organização se ocupe apenas de processos de paz e segurança, e não que ponha um rosto humano às políticas sociais. Querem criar uma divisão de trabalho que supõe tirar a elaboração de políticas econômicas da ONU, para privatizá-las sob organismos macroeconômicos e neoliberais que dão poder às transnacionais. Considerando que a ONU continua sendo o único espaço onde cada país é um voto, necessitamos que seja realmente um organismo multilateral com incidência dos movimentos sociais, para frear o avanço do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional, da Organização Mundial do Comercio ou de iniciativas como UN Global Compact [um ramo da ONU que trabalha em forma conjunta com empresas].

-Também fala da sexualidade como uma “arma da biopolítica”.

Gita Sen – Isso está ocorrendo agora na América Latina. Quanto mais se separa e se aprofunda a brecha entre sexualidade e reprodução, isso se traduz em mais autonomia para as mulheres. Acontece que a maternidade continua sendo endeusada, o que supõe que as mulheres continuam subordinadas. Enquanto a sexualidade e a reprodução estiveram muito unidas ou próximas, a liberação sexual -expressada especialmente a partir dos grupos LGBT- no era considerada “perigosa”. Na medida em que a reprodução se separa da sexualidade, a maternidade se torna cada vez mais uma escolha e, portanto, se afasta do papel tradicional de mulher-mãe. Homens e mulheres podem ter sexo sem pensar na reprodução. Isso contraria as normas religiosas patriarcais. O controle tradicional dos corpos foi sacudido, e isso repercute também em qual deve ser o papel das mulheres na Igreja.

– Como lutam as feministas neste mundo feroz?

Gita Sen – Como sempre fizemos e de algumas maneiras novas. As mulheres jovens cresceram com avanços em direitos, com mais possibilidades – inclusive jovens de classe média na Índia -, e pensam que não precisam do feminismo, que é algo velho, que é uma batalha que terminou, porque suas condições de vida são boas: podem escolher casar-se ou não, ter filhos ou não, etc. Escutei mulheres jovens dizendo: “O feminismo não é meu problema”. Creio que é um bom momento para recuperar nas novas gerações o reconhecimento às lutas, reunir-nos e mobilizar-nos para mudanças políticas. O fato de que as reações ou contragolpes aos direitos tenham ocorrido tão rapidamente nos últimos anos fez com que as novas gerações de mulheres se encontrassem com velhas feministas, unissem as lutas e possam reaprender como organizar-se, como se mobilizar, como sair às ruas, como articular com os governos, transmitindo-se conhecimentos mutuamente. Para isso, os movimentos sociais devem entender a importância de trabalhar a partir da intersecção, não apenas entre classe e gênero ou étnica e racial, mas de que forma essas questões se cruzam com assuntos econômicos, direitos trabalhistas, direitos sexuais e reprodutivos. Algo que DAWN sempre fez foi trabalhar nessa perspectiva. Isto não significa que todas nós tenhamos que conhecer todos os temas, mas temos que entender de que se trata para poder lutar. É preciso recordar que nenhum dos avanços em direitos teria sido alcançado sem a mobilização social.

– O que diria a homens e mulheres jovens que afirmam que o feminismo está acabado?

Gita Sen-Lhes diria que olhem ao seu redor. Feminismo não é só poder caminhar livremente pelas ruas. Será que a violência contra as mulheres reduziu-se a tal ponto que possamos dizer que não necessitamos do feminismo? Não creio. A maioria das situações de violência contra as mulheres ocorre dentro de suas casas. O trabalho doméstico e de cuidados continua sendo uma responsabilidade das mulheres, e isso se aprofunda quando elas têm filhos. Além disso, persistem as resistências à paridade política porque isso tem relação com quem controla o poder, com a política, com o dinheiro, em como se distribui o orçamento, em como se controla o sistema. Os homens sabem isso.

*Publicado em “La Diaria” – Montevidéu 11/11/15